segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

A HISTÓRIA DE DOMINGOS (PARTE I)

¨O problema não é com vocês, o problema é comigo. Eu preciso ir embora, me desculpe, não dá,
realmente me sinto mal aqui. Sei que tinha pensado outra coisa, planejado coisas maravilhosas, mas tenho sérios problemas que enquanto não resolver, não conseguirei ser o amigo que vocês tanto desejam. Me desculpem, mas cansei de decepcionar as pessoas próximas a mim e principalmente a mim mesmo. Estou indo agora. Adeus.¨


Fazia calor naquela manhã de dezembro. Era o dia da virada do ano no Rio de Janeiro. Quase todo mundo planejava aquela noite, acordava-se cedo, ligava-se para os amigos, separava-se a roupa branca e as roupas íntimas especializadas conforme o que se queria com mais intensidade para o ano que entraria. Domingos não planejava nada. Só pensava a merda em que estava a sua vida, sem solução para os vícios da mente. Acordou cedo, sim, mas não para planejar coisa alguma, mas para fazer o que faz sempre: se exercitar na praça próxima a sua casa.

A praça em que Domingos se exercitava fornecia a mente do jovem todo um mis`en`scene`que
sintetiza a complexidade e a hipocrisia do mundo em que vivia. Como exemplo, podemos citar dois casos principais, que alimentavam em Domingos sentimentos contraditórios. Uma era a costumeira reunião de mendigos nos bancos verde-oliva do lugar. Homens com uma certa perplexidade no semblante, alguns mais velhos, outros mais jovens, inclusive uma, somente uma, criança; traziam em seu aspecto algo de sujo, fediam a cachaça às sete horas da manhã. Não, não faziam mal a ninguém, somente pertubavam um pouco a vista harmônica das lindas manhãs de sol do verão carioca. Conversavam alto coisas idiotas, as vezes desconexas. Algumas ocasiões foram vistos brigando entre si, por motivos que não raramente inexistiam. Noutras, deliravam, gritavam alucinados, provavelmente em estados alterados de consciência ocasionados pelos entorpecentes que consumiam. Certo dia, um deles, homem negro, alto, com um porte físico considerável, começou a depredar violentamente um telefone público, completamente fora de si. De dentro do bar, saiu um ancião, com uma vassoura na mão, e sentou nos cornos do meliante. Logo depois, um grupo de taxistas que ali se encontravam ajudaram a linchar aquele homem imundo. Em pouco tempo, dois policiais chegaram e prenderam o depredador. Nessa ocasião, como em todos os dias em que, durante a sua corrida, cruza com aqueles homens sujos na dita praça, sentindo aquele odor de cachaça, Domingos sente algo confuso. Como uma pessoa culta, tem pena daqueles marginais, sabe a dureza que deve acomete-los e pensa como seria bom se alguém ou o próprio Estado pudesse tomar providências em relação aquelas pessoas. Como um ser oriundo da classe média, conservadora por excelência, nosso jovem sente um ódio, contra o qual luta. Nos seus pensamentos, povoam desejos mórbidos em relação aqueles homens, aparecem imagens de espancamentos, fuzilamentos e todo o tipo de possibilidades de extermínio. Limparia-se então da visão urbana aquelas coisas ignóbeis. No princípio, também sentia medo daqueles homens, como dos cães enormes que passeiam na praça pela manhã, mas o tempo e o costume o ensinou que como os cães, aqueles mendigos estavam dosmeticados, adestrados a suportar tudo sem latir ou morder o resto dos homens, deixando em relativa paz a sociedade fora da barbárie.


Não obstante, aquela corrida na praça não propiciava a Domingos somente pensamentos amargos e dolorosos. Havia ali algo que enchia o seu coração de alegria e de esperança. Há um certo tempo atrás, quando ia naquela praça somente malhar os músculos (e não correr), conheceu uma criança, por volta dos cinco anos de idade. Certamente, crianças causam um apetecimento inevitável na maioria das pessoas, assim como os filhotes de cachorros. Mas aquela criança era especial. Uma menina, sem metade dos dentes na boca, troncha e magrela como um cipó. Não sejamos hipócritas: feia. Ela provavelmente deve ser portadora de Síndrome de Down, ou alguma especialidade psíquica. Quando Domingos a conheceu, aquela menina estava acompanhada da avó, mas atualmente aparece acompanhada de um homem mais ou menos cinquentário, talvez um tio ou mesmo um avô. Havia algo nela que fazia o jovem corredor sentir algo indescrítivel, um alento para os seus pensamentos mórbidos. A criança não tinha medo, brincava com os cães ferozes, trepava onde quer que desse na telha, corria, e ria, ria muito, destemperadamente. Cumprimentava a todos que via, sem distinção de cor e sexo. O maior que a acompanhava ficava doidinho com ela. Mas havia ainda mais alguma coisa, que deixava Domingos realmente fascinado. Aquela menina, em seu mundo diferente e feliz, beijava a todos que encontrasse, conhecendo ou não. Demonstrava um carinho totalmente sincero, apenas pela vontade de demonstrar aquele afeto, algo espontâneo, um amor pelo mundo. Domingos então, desde o momento que conheceu a menina pela primeira vez, cada vez que corre naquela praça e cruza o olhar com aquela peraltinha maravilhosa, fica extasiado, todos os seus problemas e confusões dão lugar à um sentimento distinto, uma vontade de ser amado, de beijar as pessoas e ser beijado com sinceridade. Ele pensava: ¨Como seria bom ser pai de uma criança assim¨. (continua)