sexta-feira, 13 de junho de 2008

A AUTO-INVENÇÃO DE UM HOMEM

¨Essa corrida fantástica, essa corrida no encalço de uma vida não realmente vivida, mas colhida paulatinamente nos outros e nos vários lugares e adotada e sentida como se fosse minha, proporcionou-me uma alegria estranha e nova, não destituída de certa tristeza, nos primeiros tempos de minha existência errante. Fiz dela uma verdadeira ocupação. Eu vivia não somente no presente, mas, ainda, para o meu passado, isto é, para os anos que Adriano Meis não vivera. Nada ou muito pouco conservei daquilo que, antes, tinha imaginado. Nada se inventa, sem dúvida, que não possua uma raiz qualquer, mais ou menos profunda, na realidade; também as coisas mais estranhas podem ser verdadeiras e, aliás, nenhuma imaginação chega a conceber certas loucuras, certas aventuras inverossímeis, que se desencadeiam e rebentam desde o seio tumultuoso da vida; ainda assim, como e quanto a realidade viva e palpitante se revela diferente das invenções que dela podemos tirar! De quantas coisas substanciais, extremamente miúdas, inimagináveis, necessitam nossas invenções, para voltarem a ser aquela mesma realidade de onde foram tiradas, de quantos fios tornem a prendê-las na complicadíssima urdidura da vida, fios que nós mesmos cortamos para fazer com que elas se tornassem coisa independente!

Ora, o que era eu, senão um homem inventado? Uma invenção ambulante, que queria e, de resto, devia forçosamente viver para si, embora mergulhada na realidade.

Assistindo à vida dos outros e observando-a minuciosamente,via-lhe os infinitos liames e, ao mesmo tempo, via os meus muitos fios partidos. Podia eu, agora, atar de novo esses fios à realidade? Sabe-se lá para onde me arrastariam; talvez se tornassem logo rédeas de cavalos com o freio nos dentes que levariam para o precipício a pobre biga da minha necessária invenção. Não. Eu devia atar de novo esses fios somente à fantasia.

E seguia, nas ruas e nos jardins, os garotos de cinco a dez anos, estudando seus movimentos, seus jogos, e recolhendo suas expressões, para compor aos poucos, com tudo isso, a infância de Adriano Meis. Consegui-o tão bem, que ela, por fim, tomou, na minha mente, consistência quase real.

Não quis imaginar, para mim, uma nova mãe. Teria a impressão de profanar a memória, viva e dolorosa, de minha mãe verdadeira. Mas um avô, sim, o avô da minha fantasia inicial, esse eu quis criar. ¨

(Pirandello. O Falecido Mattia Pascal. São Paulo, Abril Cultural, 1978. p.119-120)

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