terça-feira, 1 de janeiro de 2008

A HISTÓRIA DE DOMINGOS (PARTE II)

A vida de Domingos tinha dois hemisférios: o ideal e o real. Construía em sua cabeça uma forma de homem que gostaria de ser. Delineava esse modelo a partir de exemplos muito palatáveis e sensatos. Um exemplo é a forma como Domingos concebia as relações do homem com as pessoas e com o mundo. Ele não era burro, via em sua volta um mundo egocêntrico, pessoas intolerantes, e nisso tudo formas de relacionamento marcadas pela perversão e dependência compulsiva. Domingos então buscava um ideal, marcado pela compreensão e o respeito. Principalmente nas relações humanas. O tempo é feito de momentos, e cada momento é único, cada prazer, sensação ou sentimento, é impossível levá-los além do que o tempo circunscreve. Mas o mundo não funcionava assim. Amizades passam, amores passam, mas para a maioria das pessoas, tudo tinha que durar para sempre, não se aceitava perder. A própria morte era o maior exemplo. As pessoas sofrem demais com a morte, sendo que a natureza do homem é perecível, nós temos um tempo. Não significa comodismo, e sim aceitar o inexorável.

A fórmula aparentemente não era complicada. Aproveitar o que cada momento, o que cada relação humana pode dar de bom; mas no momento em que se esgotar, aceitar a perda, saber desfrutar da lembrança, aprender com a dor, viver a maravilha da nostalgia. Aceitar que tudo nessa vida tem seu tempo também implicava saber compartilhar, por exemplo, um amor. Não, Domingos não era adepto do sexo livre. A questão era a própria concepção de amor. Uma pessoa só fica com outra ao lado quando existe algum interesse recíproco, não no sentido negativo, mas positivo. Numa relação amorosa, deve existir prazer, porém não se pode ficar restrito a coisa inicial, esta deve se desenvolver, ser posta a prova. O ciúme é a dependência desse prazer inicial. Quando um casal se inclausura deste jeito, o amor perde a sua virtude, vira vício. O amor deve desenvolver-se a partir da aceitação de três propriedades distintas e interagentes: o que é das duas partes e o que é dos dois. A existência de uma vida individual permite o enriquecimento da vida partilhada, através do acúmulo de experiências. Quem ama desse jeito, sabe que o amor recebido é atualizado a cada minuto, permanece candente. Corre-se o risco, sim, do amor, assim como um software obsoleto, não encontrar mais atualização disponível e perder seu lugar para um software mais avançado, ou simplesmente a necessidade que aquele programa supria não mais existir (a metáfora é meramente ilustrativa, para Domingos as pessoas não ficavam obsoletas, talvez os sentimentos, que se desenvolvem a medida que vivemos). A vida é um risco, e não expor os sentimentos ao risco é mantê-los aprisionados, um auto-atentado a um direito humano essencial.

Assim como as relações humanas, as relações com o mundo e com as coisas deveriam ser algo que contribuísse para o desenvolvimento do homem, seus sentidos e seu intelecto. Domingos tinha uma preocupação essencial com o progresso espiritual, e este não poderia se dar com a submissão dos sentidos aos prazeres. A relação compulsiva impede a fruição de todo o resto que o mundo pode dar. Impede também o aprendizado dos sentidos, um conhecimento muito valorizado por Domingos. Mas o ritmo rápido que o mundo contemporâneo impunha desenvolvia relações rápidas, fluidas, superficiais e por vezes, doentia. Em sua percepção crítica, a exaltação exarcerbada da imagem e a necessidade urgente de consumo impediam o desenvolvimento de relações sensuais educadas, que aproveitasse todo o potencial que dado objeto pudesse dar aos sentidos. Tudo era rápido e intenso, voltado a dependência e ao entorpecimento. Agora Domingos passou então a entender - muito ao seu modo, obviamente- o que Baudelaire entendia com o desaparecimento do objeto. O consumo construía o sujeito, passava a incorporá-lo. O homem é o que consome, constrói-se a partir disso.

Porém, apesar da construção de todo esse ideal, com um forte viés de percepção crítica em relação a realidade, Domingos não conseguia escapar das determinações mentais e culturais de sua época. Vivia imerso numa constante relação de mal-estar consigo mesmo, dada essa dissonância entre um ideal teórico e a prática. Era um sujeito compulsivo por excelência. Não existe meio termo para o jovem. Tudo é rápido e intenso, parece que cada momento é o último, que o tempo está prestes a se esgotar. Fumante compulsivo, comedor compulsivo, bebedor compulsivo. Não era um viciado mórbido em cigarros, nem obeso, muito menos alcoólatra, isto porque tinha consciência de sua compulsão, e buscava se controlar. Porém, esses controles sempre tiveram que ser rígidos, nunca foram relações saudáveis, não por falta de desejo, mas quase uma incapacidade crônica de educar os sentidos. Até em relação ao sexo isso acontecia. Se masturbava com uma frequência fascinante em dadas épocas. Quando descobria um prazer, queria que ele se prolongasse por muito tempo, e acabava não conseguindo parar, ficava às portas do vício. Por essa razão, apesar da grande curiosidade, Domingos nunca fumou maconha, apesar de um grande desejo o tentar constantemente. Entre o controle e a compulsão, sempre se sentiu mal, um fraco quando se entregava aos vícios, incompleto quando buscava o controle. Tinha nos estudos seu ideal maior. Eles lhe proporcionariam o maior prazer que poderia conquistar, aquele voltada ao descobrimento do mundo e de si mesmo, ao aperfeiçoamento, a um estado espiritual elevado. Um prazer que só seria conquistado a longo prazo, mas que lhe permitiria o que sempre almejou, se amar. Gostava muito de estudar, se sentia bem fazendo isso, era um rapaz inteligente, mas por não trazer um prazer imediato, os estudos não lhe causavam grande atração, e se via sempre seduzido a largá-lo por alguma recompensa imediata. Não era isso o que desejava fazer, mas era impelido por uma vontade fora do seu controle.

Essa rigidez intrínseca ao seu ser ultrapassava também para a própria esfera das relações pessoais. Não que Domingos não fosse uma pessoa sociável. Muito pelo contrário, era uma companhia extremamente agradável, tinha alguns bons amigos. Era seu mal-estar constante que o impedia de aproveitar ao máximo essas sociabilidades. Como em relação aos seus vícios concretos, o rapaz também acabava se tornando dependente das pessoas, desenvolvendo, por sua parte, elos afetivos não muito fortes, mas intensos e facilmente volúveis por sua parte. Era como o cigarro, a bebida, a comida, com a diferença que pessoas tem vontades, afazeres e outras relações em sua vida. Mas Domingos queria consumir as pessoas, tirar delas todo o prazer que lhe fosse permitido, e queria só para ele. Ficava enciumado quando perdia a atenção da pessoa com quem conversava, como se lhe tivessem tirado um bem. Ficava com raiva, e isso diminuia a consideração da pessoa em seu afeto. Tinha consciência disso e buscava evitar, o mundo não girava em torno do seu umbigo, ele pensava. Mas o sentimento era maior do que a razão, e sentia-se abandonado, carente, um vazio lhe tomava quando se via longe das pessoas de quem gostava. O rancor assumia colorações intensas em seu sentimento, e por vezes deixava de falar com aquela pessoa. Não obstante, mirando sempre em seu ideal (e Domingos, apesar de tudo, era uma pessoa muito esforçada), tentava lutar contra os pensamentos ruins. Mas era difícil. Viver em sociedade era uma tarefa árdua para Domingos.

Alguns dizem que era orgulho, outros vaidade, ainda tem os que dizem que a carência era a principal causa dessa dificuldade de Domingos em se relacionar com as pessoas. Talvez não seja nenhuma, talvez todas as causas sejam verdadeiras. A questão era complexa. É difícil dizer o que se passava pela cabeça do estudante. Suas atitudes e opiniões mudavam numa velocidade muito grande. A constância estava na instabilidade. Seus amigos eram em alguns dias muito queridos, noutros odiados, às vezes, desprezados, e ainda existiam dias em que Domingos se achava áquem dos seus amigos. Por isso, não raramente, buscava se afastar deles, tentando, na solidão, achar a tranquilidade para reavaliar a sua vida. Isso ocorria porque o rapaz avaliava a sua vida muito em função das conquistas e daquilo que os amigos tinham. Mas conquistas demandavam esforço, luta, tempo e sacríficio, e Domingos era incapaz de empreender um projeto desses, tudo para ele deveria ter retorno imediato, deveria proporcionar prazer imediato. A velocidade do mundo o sufocava, e ele não tinha o seu próprio tempo. Por mais que criticasse a maneira pela qual o comportamento geral se fundava, ¨deixar que a vida levasse¨, tal como dizia a música de Zeca Pagodinho, ele também acabava sendo levado por ela. Faltava-lhe tranquilidade, paciência. Não era uma coisa racional, era mais do que isso, era emocional. E Domingos sofria com a suposta inércia em que sua vida se encontrava. Mas faltava-lhe uma referência para estabelecer o que era estar em movimento. (continua)

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